A questão nuclear já foi ponto de discussão aqui na revista o Viés em fevereiro desse ano. O JOGO POLÍTICO-RADIOATIVO.
De lá para cá, alguns fatos mudaram, evoluíram ou regrediram. Questões foram clareadas e, curiosamente, outras ficaram mais obscuras.
A seguir, mais um pouco do jogo político-radioativo.
O PICADEIRO MUNDIAL
Nos últimos dias o que se viu foi um grande circo mundial. No domingo, Lula e o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan acertaram com o presidente do Irã Mahmud Ahmadinejad um acordo que previa o envio de 1200 quilos de urânio para enriquecimento fora do país. Tal urânio voltaria enriquecido a 20%, quantia que possibilita diversas pesquisas médicas e agrícolas, mas que não dá possibilidade de uso em armamento nuclear (para esse uso seria necessário um enriquecimento superior aos 90%).
A medida surpreendeu a “comunidade internacional”, leia-se EUA e União Européia mais Japão, China e Rússia.
Mais surpreendente ainda foi o que ocorreu depois disso. O acordo, que poderia ser considerado um passo a frente quanto ao “desarmamento” nuclear iraniano, foi visto com maus olhos pelas “potências” mundiais e pelos jornais de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil.
As palavras mais duras vieram da Secretária de Estado estadunidense Hillary Clinton, que considerou o acordo uma “ingenuidade” turco-brasileira. Hillary Clinton declarou também que o Irã só teria fechado o acordo com o Brasil e a Turquia temendo sanções da ONU. Ora, nada mais justo. Qual o mal nisso? Se essa foi, realmente, a finalidade do acordo, melhor. Afinal, esse seria o objetivo da ONU, logo, um país temer sanções do órgão não deveria ser visto como problema.
Novamente a hipocrisia ocidental transparece. Veiculada com exclusividade pelo jornal Folha de São Paulo, a carta do presidente Barack Obama à Lula estipula os termos de um possível acordo com o Irã. No acordo firmado pelo Brasil, Turquia e Irã os termos são muito semelhantes, ainda assim o acordo é “ingênuo”.
Enquanto nenhuma medida a favor de um acordo com o Irã era tomada, os termos eram àqueles da carta de Obama, muito semelhantes aos de um acordo proposto pela AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) em outubro de 2009. Agora, que um acordo é assinado, o jogo muda. Numa entrevista dada ao jornal New York Times, a embaixadora dos EUA na ONU, Susan Rice, disse que a carta não pode ser vista de forma isolada, não é capaz de refletir toda a discussão e compreensão entre os dois países.
Antes de qualquer iniciativa brasileira, Obama queria aquilo que disse em detalhes na carta. Mudado o cenário, aquilo já não é tudo.
Um dia depois do acordo, como foi noticiado com destaque em toda a imprensa, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU já voltavam a desenhar sanções ao Irã, desconsiderando o trabalho diplomático turco-brasileiro. Por que tanto afinco em novas sanções ao Irã? Existiria algo por trás dessas medidas? Ou seria apenas os cinco maiores donos de bombas atômicas do mundo querendo manter a paz mundial?
IRÃ – UM POUCO DE HISTÓRIA
Até 1935 o Irã tinha outro nome, Pérsia. Depois da revolução constitucional persa, toma o poder em 1921 o Xá Reza Pahlevi. Em 1941, Reino Unido e União Soviética invadem o país. O objetivo não poderia ser outro, o petróleo iraniano. O Xá deixa seu lugar ao filho, Mohammad Reza Pahlevi, alinhado ao ocidente. Anos depois, com o apoio do Ocidente, Pahlevi depõe o primeiro-ministro Mohammed Mossadegh e toma para si todo o poder de direção do país. Com patrocínio ocidental, o Xá promove diversos avanços tecnológicos ao país, mas aos poucos vai destruindo a cultura iraniana e muçulmana, arraigada no país há séculos.
Em quase trinta anos o poder ditatorial de Pahlevi não é questionado pelo Ocidente, mesmo com a caça promovida pelo seu governo aos defensores da democracia e à oposição xiita, a morte de diversos oposicionistas e a atuação da Savak, a polícia política iraniana da época.
A história muda de figura em 1979. Com apoio de grande parte da sociedade, que sai às ruas insatisfeita com a ditadura de Pahlevi, se inicia a revolução iraniana. Depois de 14 anos no exílio, o Aiatolá Khomeini volta ao país e lidera a revolução, que aos poucos torna-se uma revolução muçulmana. O que cria a sociedade iraniana hoje, completamente baseada em preceitos do Corão.
Um ano depois, Irã e Iraque começam um conflito que duraria oito anos, a Guerra Irã-Iraque. O enforcado Saddam Hussein comanda a ofensiva iraquiana num conflito que acaba sem vencedores. Curiosamente, o governo estadunidense apóia Saddam, o terrível ditador que seria morto pelas mãos estadunidenses anos depois.
BÔNUS NEGRO
No complexo jogo, existe ainda mais um ponto fundamental, o “líquido do capitalismo”, o petróleo.
Entre tantos países com regimes ditatoriais espalhados pelo mundo, tantos no Sudeste Asiático, África e América do Sul, é justamente com o Oriente Médio os maiores problemas para a “democracia” num âmbito global, pelo menos é o que “vende” o governo dos EUA.
Observando certos aspectos da política externa estadunidense podemos ver medidas contraditórias. Enquanto a Arábia Saudita, país governado por um rei absoluto, onde não existe poder legislativo ou partidos políticos, não é incomodado; a ditadura de Saddam é deposta no Iraque e o regime do Irã é posto em dúvida.
O que se percebe é uma disparidade que só pode vir de algum outro fator que não a “defesa da democracia” ou a “busca por direitos humanos em todo o mundo”.
Desde 1960, com a criação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), parece que o desejo estadunidense é, a partir da cada vez maior necessidade por petróleo, conseguir controlar os países com as maiores reservas do combustível.
Arábia Saudita, há décadas alinhadas aos EUA, é pouco incomodada, afinal o que poderia acontecer se a maior reserva de petróleo do mundo fosse aborrecida? Uma nova crise do petróleo não parece ser um bom negócio aos cofres americanos.
Quanto às outras grandes reservas de petróleo? Irã e Iraque são, respectivamente, 2ª e 3ª maiores reservas. Logo, um não alinhamento aos interesses estadunidenses, os maiores consumidores de petróleo do planeta, não é algo visto com muita simpatia pela “comunidade internacional”.
Como visto, na história do Irã já houve uma invasão com um objetivo claro, o “ouro negro”, capitaneada por Reino Unido e União Soviética que usaram a II Guerra Mundial, uma época de grandes conflitos, para invadir sem grandes entraves ou protestos de outros países. Décadas depois, foi os Estados Unidos que utilizou uma boa justificativa para tomar o Iraque, a “guerra ao terror”. Na época, documentos do serviço secreto estadunidense provavam que o Iraque produzia armas químicas e biológicas. Depois de vários anos, nada foi encontrado, mas o regime imposto pelos EUA continua em terras iraquianas, servindo ao interesse mais escuso e reprovável daquele conflito, a busca por grandes reservas de petróleo. Agora, o Irã é que passa por várias sanções ocidentais. Com um belo objetivo, acabar com a possibilidade de o governo iraniano produzir armas nucleares.
É novamente por um objetivo “humanitário”, pela defesa do planeta, que os EUA e a União Européia tentam dissuadir o mundo de que algo deve ser feito. Mas por trás dessa aura de “defesa” pode estar o mesmo objetivo anterior, o controle do petróleo iraniano, algo que seria de muita utilidade para um país em declínio, com grandes necessidades energéticas e sem reservas suficientes para manter seu consumo.
O jogo parece ser de cartas marcadas. Como num filme de faroeste, o bom se apresenta na defesa de princípios, na busca por uma vida melhor para todos etc. Já o mau e o feio só querem destruição, dor e a dominação completa do mundo.
NOVAS POSSIBILIDADES PARA UM NOVO JOGO
O mundo precisa temer algo, alguém. Como disse o presidente Lula depois da negativa dada pelo Conselho de Segurança da ONU em negociar com Irã: “Fizemos um acordo que eu achava que os países que queriam levar o Irã para a mesa [de negociações] iam ficar felizes. Eis que eles não queriam, porque no mundo tem gente que não sabe fazer política sem um inimigo. Primeiro, é preciso criar um inimigo. Esse inimigo tem que ser ruim, embora possa não ser. Mas você tem que fazê-lo ruim, a cara tem que ser feia e nós temos então que demonizá-lo”.
A tática parece de filme B de ação, mas não é. Por todo o planeta a possibilidade de um ataque estrangeiro, de uma nova guerra ou de um atentado cria um medo global, aliado ao crescimento de preconceitos com todo aquele que seja um pouco diferente (como pode ser visto aqui, no subtítulo Islamofobia). Essa tática do medo ganha cada vez mais poder, ainda mais se aliada aos meios de comunicação, ponto de apoio da maior parte da sociedade para receber “instruções” sobre o que fazer e o que não fazer.
Felizmente, o jogo já não pode mais ser o mesmo de tempos atrás. Diferente da época da II Guerra, ou até da época do ataque ao Iraque, o mundo hoje é outro. Num instante é possível ter notícias de todas as partes do mundo pela rede mundial de computadores.
Essa instantaneidade enfraquece o poder de governos e da chamada “grande mídia” de escolher o que dizer e o que fazer.
Em grande escala, parece quase impossível que estas instâncias controlem a população por completo. Mesmo que grandes telejornais escondam notícias ou subvertam certos fatos, já é possível que, por outros instrumentos, principalmente aqueles ligados a Internet, qualquer um saiba a verdade. Ou se não tanto, crie sua própria verdade, interpretando aquilo e aquele que lhe convir sem a necessidade do intermediário televisivo ou impresso.
O JOGO POLÍTICO-RADIOATIVO mudou em vários aspectos. Na semana passada ficou ainda mais clara a existência de armamento nuclear em Israel. Ontem, ao fim da conferência para revisão do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, pouca coisa ficou definida. Exatamente pela provável existência de armamento nuclear em Israel. Afinal, mesmo que os EUA tenha o poder de grande potência, não pôde manter uma posição tão hipócrita ao atacar o Irã sem atacar Israel. A principal decisão tomada foi uma possível conferência entre os países do Oriente Médio para que a região se torne “zona verde” quanto à armamento nuclear. A possível conferência deve ser realizada em 2012. Até lá, muito do JOGO POLÍTICO-RADIOATIVO pode mudar.
O JOGO POLÍTICO-RADIOATIVO, parte II, pelo viés de João Victor Moura
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