AS GOTAS D’ÁGUA

Nem a chuva que insistia em cair no dia 10 de fevereiro, em Santa Cruz do Sul, foi capaz de desmobilizar as cerca de duzentas pessoas que foram à rua para protestar contra a privatização do serviço de água e saneamento básico no município. Reunidos durante a manhã na praça central da cidade, diversas pessoas se abrigavam em abas, guarda-chuvas e barracas, enquanto a música composta especialmente para a situação por Gerusa, cantora e estudante da Unisc, clamava: água não é mercadoria/água é sinônimo de vida.

A manifestação, que envolveu mais de 30 entidades – entre movimentos sociais, estudantis, partidos, sindicatos e entidades religiosas –, é decorrente do lançamento de um edital de licitação do serviço pela prefeitura municipal, no final de 2010.

O edital prevê a licitação para a escolha da empresa que vai realizar o serviço de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário no município, realizado pela Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN) há mais de 40 anos. Apesar de a licitação permitir a participação de empresas públicas e privadas, as entidades envolvidas na manifestação alegam que a empresa pública estadual já está excluída do processo de maneira indireta, em função da exigência de indicadores financeiros que ela, pelo caráter social de seus investimentos, é incapaz de obter.

A motivação do ato, na realidade, extrapola o âmbito municipal. As discussões sobre a futura escassez de água potável para saciar as necessidades básicas dos seres humanos envolvem o mundo inteiro, e entram em choque com a lógica capitalista em que a obtenção do lucro é primordial e o acesso, em consequência, é seletivo.

Enquanto isso, a realização de concessões privadas para realizar os serviços de água e saneamento vem ocorrendo no Brasil inteiro, desde que foi outorgada a Lei 11.445, que institui o Marco Regulatório do Saneamento. Segundo a lei de 2007, os municípios passam a ser o poder concedente e têm autonomia para escolher o modelo que considerarem mais atraente – seja o contrato com uma empresa pública, como é o caso da CORSAN, a criação de uma autarquia municipal ou a concessão a empresas privadas.

Segundo dados do IBGE de 2010, apenas 62,6% das moradias urbanas no Brasil têm acesso simultâneo a água, esgoto e coleta de lixo. O abastecimento de água atinge 93,5% dos domicílios, enquanto o serviço de esgotamento sanitário abrange 68,3%, sendo a situação, em ambos os casos, pior quanto menor a renda da população (no caso da classe com rendimento médio de até meio salário mínimo per capita, somente 41,3% dos domicílios têm os serviços oferecidos de forma simultânea). Por este motivo, surgem questionamentos quando empresas privadas, cuja natureza pressupõe a lucratividade dos negócios, passem a ser responsáveis por serviços essenciais à manutenção da qualidade mínima de vida.

Mobilização segue sob a chuva. Foto: Tiago Miotto

A cidade e a CORSAN

No caso de Santa Cruz do Sul, a discussão sobre o assunto é anterior ao lançamento do edital. No fim do ano de 2009, o contrato com a CORSAN venceu. A empresa segue prestando o serviço até hoje, mas a proposta de renovação do contrato que apresentou em março de 2010 foi ignorada pela prefeita Kelly Moraes (PTB), sob a alegação de que a empresa pública estadual havia chegado tarde demais. A proposta recusada incluía investimentos de R$ 135 milhões na estrutura do município.

Enquanto isso, já estava em andamento o Plano Municipal de Saneamento de Santa Cruz do Sul, criado no final de 2009 e complementado no início de 2010, que previa a aproximação com a iniciativa privada como uma das metas para o município. O Plano foi criado sob alegada urgência, devido ao fim do contrato com a empresa estadual. Apesar da pressa, a empresa seguiu prestando o serviço sem contrato até o presente momento. A não renovação do contrato impediu, ainda, que Santa Cruz arrecadasse 8,2 milhões de reais a fundo perdido no último ano. A postura indefinida da prefeitura gerou a indignação de diversas entidades, que se organizaram em um Fórum Municipal em Defesa da Água Pública.

No dia 27 de janeiro, 39 entidades reunidas na Câmara Municipal de Santa Cruz do Sul publicaram uma Carta contra a privatização da água, em que a defendem como “um bem comum e essencial a todo o tipo de vida do planeta”, e requerem que o processo de licitação seja suspenso e as negociações com a CORSAN retomadas.

As ações do movimento geraram respostas da base do governo no município. A prefeita Kelly Moraes afirmou à imprensa local que “Concessão não é privatização”, pois o município continuaria dono da água e poderia cobrar e fiscalizar a empresa vencedora. Afonso Schwengber, presidente do Sindicato dos Comerciários de Santa Cruz do Sul e um dos coordenadores do Fórum, questiona a afirmação. “Se eles querem defender [a privatização], que defendam claramente. Não façam esse papel que estão fazendo hoje, a toque de caixa. Se a CORSAN já está a um ano prestando o serviço e a população segue sendo atendida, não vai fazer diferença mais meio ano. O que nós queremos é aprofundar essa discussão”, diz.

A insatisfação com os serviços da Corsan no município, que apresentaram diversos problemas nos últimos anos, é uma das justificativas da prefeitura para a realização da licitação o quanto antes. O contraponto do movimento anti-privatização é que a administração do Estado mudou, e o governo de Yeda Crusius havia promovido, com a Corsan, a mesma política de sucateamento que realizou em outras áreas de sua gestão, como a educação.

O edital

Diversas controvérsias envolvem o edital da licitação lançado pela Prefeitura de Santa Cruz do Sul. O documento prevê que a concorrência será realizada em três etapas: no dia 15 de fevereiro, as concorrentes devem entregar à Comissão de Licitação do município três envelopes: um contendo os documentos de habilitação, que tratam de qualificações que as concorrentes devem apresentar, outro contendo a proposta técnica e o último, contendo a proposta comercial.

A proposta técnica e a proposta comercial só serão avaliadas depois que as empresas tiverem os documentos do primeiro envelope aprovados. Eles determinam índices econômico-financeiros (como os índices de liquidez e de endividamento) mínimos para que as empresas sigam na concorrência. Tais índices, segundo o Fórum, excluem a Corsan da licitação antes que a população possa conhecer sua proposta técnica e comercial. Rogério Ferraz, do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (SINDIÁGUA/RS), explica: “No edital de licitação, constam os índices econômico-financeiros. São números que estão disponíveis no site da CORSAN, no site da Sabesp, no site da Sanebar, e as empresas que estão tentando pegar o saneamento aqui no Rio Grande do Sul têm feito isso nos editais de São Borja, de Uruguaiana – com os quais o edital daqui está muito parecido, o que dá a entender que são as mesmas empresas que estão montando os editais no estado. A empresa pública tem uma particularidade no saneamento: como os contratos são longos, de 25, 30 anos, e os investimentos a fazer são muito altos, a Corsan pega dinheiro para amortizar ao longo deste prazo. Ao invés de pagar muito por mês ao longo de dez anos, ela paga pouco por mês em 25. Já a empresa privada, quando pega dinheiro é para fazer uma ponte, ano que vem não tem mais essa dívida”.

Por este motivo, empresas públicas como a CORSAN têm um endividamento grande. “Mas isso não quer dizer que ela seja incompetente ou que ela não possa participar de uma licitação porque não teria condições de honrar os compromissos”, afirma Rogério. “O sistema público de saneamento funciona assim. Como o sistema privado tem um índice de endividamento pequeno, porque são obras rápidas que ele faz, o edital coloca um índice de liquidez mínimo que exclui a CORSAN. Eles dizem: ‘está no edital, se exclui a CORSAN não é culpa nossa, precisamos que a empresa que vá assumir aqui em Santa Cruz tenha capacidade de investimento’. Isso é o que eles dizem, mas na realidade, tudo foi preparado para tirar a empresa pública já no primeiro envelope”.

Outro ponto do edital que gerou questionamentos é a parte que trata da indenização devida à CORSAN. O documento determina que a concessionária escolhida deve “pagar a indenização dos bens reversíveis e não amortizados pertencentes à CORSAN e existentes no momento da assunção do serviço”, o que equivale à estrutura pertencente à companhia que é utilizada na cidade. Assim, a nova prestadora do serviço já sai com uma dívida de 130 milhões de reais.

O procurador jurídico da prefeitura afirmou à imprensa local que, inicialmente, a tarifa da empresa vencedora na licitação seria menor do que a atualmente cobrada no município. Ferraz questiona a ênfase no inicialmente: “No contrato com a empresa privada, vai rezar que a empresa que não pode ter prejuízo. Ela pede para fazer o equilíbrio financeiro na prefeitura. Está no edital que a empresa privada que ganhar já sai com um prejuízo de 130 milhões de reais de indenização. Como ela vai ter que trabalhar, para agradar a prefeita, um ou dois anos no prejuízo, na primeira revisão de contrato – que está prevista na lei federal a cada cinco anos – ela vai alegar que está no prejuízo e a prefeitura vai ser obrigada, por contrato, a conceder o aumento. Está no contrato: a empresa tem que manter o equilíbrio financeiro”.

Além disso, causou espanto o resultado obtido por técnicos do SINDIÁGUA/RS, que compararam a tarifa atual com o cálculo tarifário estabelecido pelo edital. Em uma tabela feita a partir do edital da licitação em Santa Cruz, uma família de baixa renda que tem água e esgoto tratados pela Corsan paga atualmente R$ 28,17. Pela fórmula do edital, a mesma família vai passar a pagar R$ 107,10. Os possíveis aumentos, da ordem de até 370%, fizeram com que a prefeitura anunciasse que vai fazer uma revisão dos valores.

Caminhada rumo à prefeitura. Foto: Tiago Miotto

A água em mãos privadas

No ano de 2000, uma mobilização popular que ficou conhecida como a “Guerra da Água” expulsou a transnacional responsável pelo abastecimento de água em Cochabamba, na Bolívia. A revolta ocorreu depois que a empresa estadunidense Bechtel, responsável pelo serviço, tomou medidas drásticas, como o aumento das tarifas em 100% e a taxação da água da chuva, caso os camponeses resolvessem armazená-la em cisternas. Em outros locais da América Latina, situações parecidas ocorreram em função da privatização da água, inclusive com a vizinha Argentina.

O edital de Santa Cruz do Sul não é tão radical, mas desestimula a utilização de fontes alternativas de água potável – elas somente devem ser usadas “em caráter de exceção e nos casos em que, comprovada e devidamente autorizados por quem tenha poderes para tanto, não for possível o provimento de água por parte da concessionária”. Afonso Schwengber, do Sindicato dos Comerciários, se mostra preocupado: “o que vai acontecer é o mesmo que aconteceu com a licitação das estradas. Hoje, se tu criares uma estrada alternativa aos pedágios, a empresa concessionária entra com um processo e pede indenização por perdas. Isso vai acontecer na cidade”, diz.

Quatro empresas estão inscritas na licitação, fizeram visitas técnicas à área e efetuaram o depósito de garantia. Além da CORSAN, participam da licitação duas empresas de São Paulo e uma do Rio de Janeiro. Todas são controladas por grandes grupos financeiros, como a empresa Foz do Brasil, da Organização Odebrecht (envolvida em denúncias de superfaturamento na construção de aeroportos no ano passado), e a empresa Águas do Brasil, do grupo Queiroz Galvão, grandes apoiadoras da democracia por meio do financiamento de campanhas de candidatos e partidos.

O Fórum em Defesa da Água Pública levanta a possibilidade de a licitação ser um jogo de cartas marcadas e denuncia a prática de lobby por parte de empresas interessadas nos serviços em outras cidades, nas quais o contrato vigente está em vias de vencer. Rogério Ferraz afirma que as empresas costumam combinar propostas por meio da formação de consórcios, para melhor distribuir a cobertura dos serviços pelos municípios. Além disso, diz, “quase que invariavelmente os políticos das cidades que estão querendo privatizar tiveram seus patrocínios de campanha feitos por essas empresas de saneamento”.

Na chegada, portões fechados.

O movimento

O ato que ocorreu em Santa Cruz do Sul, conforme explica Afonso Schwengber, foi só um momento da mobilização. A reunião de pessoas e entidades vindas de diversos pontos do estado resistiu à chuva e realizou ainda com um ato ecumênico, antes de culminar em uma caminhada ao parque da Oktoberfest, quando a chuva resolveu dar trégua, onde foram encontradas viaturas da Brigada Militar e portões fechados.

Durante a tarde, correra a informação de que o deputado federal Sérgio Moraes (PTB) – aquele que se lixa para a opinião pública, em suas próprias palavras – estaria arregimentando eleitores em vilas e bairros para que realizassem uma contra-manifestação, o que poderia acabar em conflitos. No entanto, a polícia esteve presente o tempo todo e a manifestação correu sem problemas.

O interesse do deputado Sérgio Moraes – que chegou a dar declarações à imprensa local – pela questão de âmbito municipal serviu de pretexto para que manifestantes questionassem a autoridade da prefeita Kelly Moraes, sua esposa. O deputado esteve presente com Kelly e o procurador jurídico do município quando estes receberam a comitiva de oito pessoas do movimento pela água pública, sem que se chegasse a nenhum acordo.

No dia seguinte, o Fórum Municipal em Defesa da Água Pública ingressou na Justiça    pedindo a suspensão do edital de licitação. A ação questiona legitimidade das exigências de índices econômico-financeiros no edital e leva à Justiça a tabela com os cálculos feitos pelos técnicos da CORSAN que demonstram o enorme aumento que a nova tarifa pode acarretar, e é desqualificada pela administração municipal, que afirma que a manifestação baseia-se em motivações políticas.

Para os integrantes do movimento contra a privatização da água, a mobilização cresce à medida que a população toma conhecimento da situação. Junto com a ação foi entregue um abaixo-assinado com 3,2 mil coletadas até o dia 11. A expectativa é que o ato no dia 15, data em que serão recebidos os envelopes da licitação, seja ainda maior.

À parte as especificidades políticas e técnicas de cada município, esta é uma discussão que está tendo espaço em diversos pontos do estado e do país. Em Uruguaiana, a empresa vencedora da licitação, ligada ao grupo Queiroz Galvão, ainda não assumiu, pois tramita na Justiça uma ação que questiona o processo licitatório. No estado, discussões semelhantes ocorrem em São Borja, São Luiz Gonzaga, São Gabriel, Erechim, Rio Grande, Estrela e Santa Maria, em um debate que tende a se ampliar ainda mais.

AS GOTAS D’ÁGUA, pelo viés de Tiago Miotto.

tiagomiotto@revistaovies.com

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